terça-feira, 5 de agosto de 2014

Banheiro R$1,00


Viaduto do Chá, essa procissão de gente que segue a passos rápidos, um atravessamento apressado margeado pelos charlatões do tarô, jogo de búzios e outras macumbas inventadas e adornadas com chifres de bode, cristais e promessas. Em frente ao Teatro Municipal um cantor sertanejo faz seu show, o amplificador estourado é uma caixa de abelhas e o público forma colmeia ao redor. Mulheres feias, bêbadas e sorridentes exibem sua dança e suas barrigas salientes para fora da calça apertada e da camiseta amarrada sob os seios.  Fazem gracejo aos homens em roda, que assistem passando o tempo. A roda quase atrapalha o fluxo da cidade, o ir e vir entre escritórios e restaurantes. É horário de almoço.
Shopping Light, subo seus três lances de lojas até o piso da praça de alimentação, tudo tem o mesmo cheiro, essa comida rápida, destemperada. Me demoro na escolha do restaurante, tantas opções, todas tão iguais. Não consigo decidir, minha bexiga dói. Já estava apertado desde antes, não consigo decidir, melhor procurar um banheiro. Fui. Catraca na porta. Coisa mais despropositada ter que pagar para livrar-se de seus excrementos, nunca gostei de pagar para ir ao banheiro, mas no aperto...  um real pelo prazer de urinar no mictório, sinto o calor úmido e ascendente da urina, sim , entendo perfeitamente Duchamp. O mictório não é conceito, é realmente uma obra prima. Alívio nos rins e enquanto chacoalho o pênis já consigo pensar tranquilamente: à parmegiana ou por quilo? Um real não é nada por essa sensação.
Volto à mesa decidido, peço meu prato, pago, como. Ao redor as conversas todas são uma massa indecifrável, volumosa, como uma boca que mastiga e mastiga e mastiga. Terminei. Cutuco com o palito um naco de carne entre os dentes e penso que o shopping não precisa de cobrar pela manutenção de um banheiro, mas para manter afastados os indesejáveis, toda essa gente do viaduto. Levo o prato até a lixeira, separo recicláveis. Desço os três lances de lojas. Sigo minha vida. Neste mesmo dia, mochila às costas, caminho já numa rua mais nobre, rua de bares e restaurantes, gente descolada, cinemas. Estou somente passando, rumo ao metrô. Ouço um grito rouco, grave. Como de um animal. Presencio uma cena grotesca, um mendigo sujo, vestindo seus andrajos, com as calças arriadas à meia bunda, gritando com o dono de uma banca de jornal: “Eu vou mijar onde, caralho? Eu vou mijar onde? Quer chamar a polícia chama, pode chamar” E continuava a urrar por sua necessidade fisiológica, existencial, encurvado, agarrando fortemente o próprio pênis sob as calças já úmidas. “Eu vou mija onde caralho?” 

Murilo De Paula, ator, dramaturgo e intrometido: escrevo, rabisco, improviso palavras, desenhos, qualquer coisa que caiba na voz que se faz entre um e outro. Atualmente integro as companhias Nave Gris Cia Cênica e Cia Teatro Balagan. Rabisco, corto e colo o Âncora Zine, que veio a mim já com Mãe e Pai, me considero então o Amante.